Resumo semanal: Paul McCartney, telas, óleo Soya, Barbie madrasta
Edição especial de 1 aninho
Sábado
Todo ano, um novo show do Paul em São Paulo. Todo ano, Juliana dizendo que de jeito nenhum vai gastar essa nota pra se apinhar dentro de um estádio. E depois, no dia seguinte do show, Juliana lamenta profundamente não ter gasto aquela nota para se apinhar dentro de um estádio.
Band on the run foi uma música da minha infância. Era a vez dos laser disc e meu pai tinha o Get Back. Sempre ouvíamos e assistíamos em família, aos sábados à tarde, meu pai e minha mãe com um copo de cerveja e eu e meu irmão dançando no tapete, entre o sofá e a televisão.
Lembro de uma vez na casa de um amigo do meu pai. Ele tinha duas filhas mais ou menos da minha idade, uns sete, oito anos. Fomos à casa dessa família certa noite comer pizza e eles colocaram o LD para tocar. As filhas sabiam cantar em inglês e moviam os lábios “... sent inside forever...” olhando para o nada. Eu não sabia inglês, e fiquei impressionada com aquelas meninas da minha idade que sabiam inglês e sabiam cantar uma música de adulto.
Só fui começar a aprender inglês formalmente pelos doze, quando a matéria entrou no currículo escolar, na sexta série. Usávamos um livro chamado Side by Side, e o meu embaraço para pronunciar Switzerland quando a professora Maria Alice pediu que eu lesse o exercício em voz alta. Nós sempre rezávamos Ave Maria em inglês antes de começar a aula.
Voltemos. Em 2023 Paul veio novamente ao Brasil. Cecília tinha menos de 2 meses e nem pensar em fazer a viagem até São Paulo (ou até lugar nenhum). Tive, então, de me conformar com jamais vê-lo, porque depois ele estaria velho e exausto para vir cantar para nós. Até que em 2024 ele veio a Florianópolis: a humilhada foi exaltada — mas só conseguiu comprar ingresso para o setor dos humilhados mesmo. Pouco importa, importa era vê-lo.
Foi tudo maravilhoso, mas sempre a burocracia abre suas asinhas. Não li os termos do contrato e não vi que era proibido entrar de mochila. Desavisada, exagerada e totalmente fora de forma para eventos do tipo (o último foi Phil Collins em 2017), enchi uma pequena mochila (juro que era pequena!) com capas de chuva, água, carteira, coisas de mulher. Na revista, uma segurança que dava duas de mim:
— Ei ei, espera aí, isso é uma mochila?
— Evidente.
— A senhora não pode entrar de mochila.
— Quem disse?
— Está nas regras. Você não leu as regras?
— Mas, moça, é pequena. E você viu que não tem nada de ilícito aqui dentro.
— Mochila. Não pode. A senhora não vai entrar com ela.
O diálogo aconteceu com um balé vai-não-vai. Tentei avançar, ela esticou o braço. Ficamos nessa por um tempo até meu pai, que já tinha entrado com sua mochilinha (sim, a dele foi bem-vinda), me viu em apuros e se aproximou. Tirei meus objetos da mochila e fui colocando nos bolsos da calça e da jaqueta. Enrolei, dobrei a mochila e coloquei dentro da mochila dele.
— Pronto, minha senhora. Sem mochila — mostrei as mãos espalmadas e as costas vazias. Entramos.
(Dias depois, remoendo a cena, devia ter insistido que aquilo não era uma mochila, absolutamente. “É minha bolsa, senhora! A senhora não está vendo? É minha bol-sa! — Ora, eu a chamo de bolsa.” Por que essas ideias só aparecem no banho, enquanto argumentamos em companhia das embalagens de shampoo?)
Teve também o caso das garrafinhas d’água. Não queríamos pagar 30 reais a água, então passamos no mercado e levamos as nossas garrafinhas — isso meu pai disse que podia. No primeiro obstáculo, o algoz já mandou que tirássemos a tampa: “garrafinha de água só entra sem tampa”.
— Como assim, meu amigo?
— Não pode a tampa.
— E eu vou ficar com a garrafa aberta, sem poder guardar, tendo que segurar na mão?
— Vai, sim, senhor. (Com esse aí foi meu pai quem argumentou. Eu sou mais serviçal e já tinha destampado a garrafa e jogado a tampinha entre outras milhares.)
— Mas por quê?
— Senhor, tem que entrar com a garrafa aberta.
— Que idiotice!
E tirou a tampa e jogou no saco plástico.
“Não vai dar para bater palma!”, foi a minha contribuição ao debate.
Tampinha da garrafa não pode, mochila não pode, maconha pode à vontade. Se pelo menos a burocracia servisse para acabar com a catinga de bosta seca, tá valendo. Mas os cigarrinhos pululavam aqui e ali — era grande a tentação de distribuir petelecos naqueles biquinhos melados — que juram que não são viciados, mas não conseguem ver um caralho de show sem chapar.
Segurando as nossas minalbas, decidimos pegar umas cervejas enquanto Paul não chegava. Deixei meu pai guardando o nosso lugar com seu corta-vento neon, passei no caixa, peguei as fichas e fui até o balcão.
— Duas cervejas (Budweiser, 18 reais — a título de informação), por favor.
— Amiga, assim, eu só posso entregar uma cerveja por pessoa.
— Meu Deus, quanta regra num lugar só!
— Ahahaha pode crer.
— É sério isso?
— Assim, se alguém da organização vê você saindo daqui segurando dois copos, eu tô ferrada...
— ...
— Você pode rasgar a ficha e pegar uma agora e a outra depois ou pode chamar a pessoa até aqui para buscar.
Puxei pelo braço um transeunte com a camiseta do Yellow Submarine, pedi que ele pegasse uma cerveja com a minha ficha e desse na minha mão. Mentira — essa foi a solução genial que me veio minutos depois. Obediente, voltei para o lado do meu pai com uma cerveja só e falei, rindo, para ele ir buscar a outra. Ele foi, rindo também, porque somos dois bobos alegres.
Quanto ao show, ainda não saí dele. Montei a minha playlist Show McCartney, que me faz companhia desde então. Canto Ob-la-di, Ob-la-da para a minha filha e ela se empolga no “li-li-li-li-life goes on”. Canto “Na-nana-nanananaaa”, ela abre e fecha a boca tentando fazer igual. Achei que fosse me acabar de chorar — como já me emocionei tanto — quando chegasse Let it be (e Let me roll it, e Blackbird, e Carry that weight). Mas só conseguia sorrir muito. Descobri New, um frescor otimista, que não conhecia e ficou no repeat dessa semana alucinada.
Domingo - alguns em um
“Quem não gosta de política é governado por quem gosta...”
Estou de acordo. Governem, governem à vontade, se refestelem, só me deixem em paz. Não sabia dos candidatos, as datas, e nem quem era Pablo Vittar antes da cadeirada — e só soube da cadeirada porque gosto de barraco. Moro longe da minha zona eleitoral há quatro anos e transferir o título até passou pela minha cabeça, mas, quando fui atrás de me informar, já tinha perdido o prazo. Que pena!
Tentei justificar certinho a minha abstenção do primeiro turno, mas não lembrava o número do meu telefone de 20 anos atrás e fui bloqueada no aplicativo. Passou. Acabei esquecendo de cumprir o dever cívico também no segundo turno por pura distração: no sábado fizemos a festinha de um ano da Cecília e o domingo foi dedicado aos comentários, à partilha do panelão de salsicha e à degustação do espólio de cervejas e docinhos (exagerei na conta: foi a minha primeira festa de um ano).
Até que, bem, deixa eu resolver isso de uma vez. Entrei no aplicativo e consegui pular os pneus, me arrastar sob as cercas de arame farpado, cruzar a ponte levadiça e o lago de crocodilos. Na hora de justificar, eu precisava enviar um documento que explicasse a minha ausência nos dois turnos.
No primeiro, mandei um print do meu extrato bancário na semana do pleito: não seria possível ter comprado passagens para ir até São Paulo votar com um saldo daqueles. No segundo, o convite da festinha de aniversário da minha filha. Ora, como é que vou me ausentar da festa de um ano da minha neném?
Não sei como faz para saber se deu certo ou não. Só estou rezando para que tenham senso de humor, me mandem o boleto e esqueçam que eu existo.
Segunda-feira
Hoje vieram colocar a tela aqui na varanda e janelas do apartamento. Um casal muito simpático. Ele mexia com a furadeira e o martelo emborrachado. Ela desembaraçava e ajeitava as cordas. Não diziam uma palavra entre si. Achei uma cena bonita. Algum dos dois, não vi quem, apoiou um pirulito chupado no parapeito da janela do quarto e o esqueceu ali.
Terça-feira
Um ano da minha filha no dia de São João Paulo II.
Essa data merece páginas muito dedicadas, e não um reles dia neste Resumo Semanal. É um texto que escreverei por toda a vida e com toda ela.
Um ano da minha filha no dia de São João Paulo II.
É seu amigo especial, minha filha. E dos mais doces, mais firmes, mais dedicados.
Quarta-feira
Hoje, com 1 ano e 1 dia, ela virou a embalagem de Soya no chão da cozinha. Estava brincando no armarinho debaixo da pia com seu caixa-encaixa preferido — as panelas — e eu me descuidei, esqueci de tirar o óleo do gabinete. Saí da cozinha por uns dez segundos e, quando voltei, só vi a mancha de óleo meio na passadeira, meio no chão e suas mãos, braços e pescoço besuntados. Ela me viu entrar e, mesmo com o berro que dei, sorriu para mim com seus quatro dentinhos.
Era hora de dar a janta, mas ela precisava de um banho. Precisava limpá-la antes de comer, mas também precisava limpar a cozinha, senão poderíamos escorregar ou espalhar ainda mais a mancha rançosa. Precisava tirar ela dali o mais rápido possível, mas ela iria imundear qualquer metro quadrado em que eu a colocasse.
Ser mãe é tomar decisões muito rápidas, modalidade em que sigo me aprimorando, aos tropeços. Ainda não tinha certeza quanto a colocar travas nas portas dos armários, comprei e não instalei, pois pensava “que coisa mais saudável e intrigante e bonita e genuína a curiosidade dos bebês pelo mundo, deixa a menina mexer, é só ficar por perto”. Mas o episódio do Soya (e um outro, anterior, envolvendo um pacote de canjica), foi decisivo. E com certa culpa declaro colocadas as travas no gabinete e na despensa.
Ah, é claro, posso guardar o óleo em outro lugar. Mas há outros produtos ali e há o barulho das panelas e suas tampas amassando contra o piso em plenas sete da manhã — caso encerrado.
Quinta-feira
Meu grande medo sempre foi descobrir que, por negligência ou descuido, tinha uma dívida. Primeiro, por causa da burocracia que se tornaria a minha vida; segundo, porque dificilmente teria como pagar (quem leu o resumo semanal anterior sabe).
Hoje a Xuxa do terror puxou a minha cartinha: descobri que, por negligência e descuido, tenho uma dívida. Preciso pesquisar quantos anos de prisão correspondem a essa quantia: se eu me entregar, “vejam, senhores, me levem, eu assumo, prefiro pagar com a minha liberdade”, passaria um ano presa? Dois? Não parece tão ruim.
Escreveria a minha newsletter com tocos de lápis em cadernos sebosos e depois teria de digitar tudo para enviar a vocês, quando saísse em liberdade. Ou, então, passaria sorrateiramente as folhas dobradas a algum familiar durante a visita, e esse intermediário digitaria e postaria no Substack. Imaginem cada Resumo Semanal que ia dar! Quantos livros eu conseguiria ler!
Sexta-feira
Uma amiga minha me encaminha a mensagem que o pai da filha dela mandou no zap: “você se incomoda que eu vá acompanhado na festinha da neném?” — não me impressionei.
Ela não sabia o que responder, então, me pediu conselho: incomodar-incomodar, não se incomodava, a história estava superada; mas mesmo assim... Era o primeiro aniversário da menina, a festa que ela organizou com tanta expectativa. Minha amiga me disse que queria ser madura e quebrar o gelo de uma vez — “melhor conhecer a bruaca que faz pose de família feliz com a minha filha num contexto desses do que em uma visita mais intimista” —, mas também não sabia se estava preparada.
Disse a ela que ela deveria estar preparada para a moça ser linda e chique, ser simpática e divertida e encantar a todos enquanto ela, a mãe, servia coxinha pelo salão. Que deveria estar preparada para ver a filhinha sorrindo no colo da fulana, com o pai ao lado, abraçando as duas. Ou, pior, para ver a pequena engatinhando aos apupos na direção daquele par de saltos altos que a celebraria com uma voz estridente e uma enorme embalagem de presente.
Ela deveria estar preparada para se apresentar sem gaguejar, enquanto a fragrância doce que ela já sentiu na filha depois de um sábado na casa do pai chegava ao seu nariz feito um soco. E para ser flagrada avaliando o comportamento do casal de canto de olho — não, ela não queria estar na cena, mas mulher é um bicho complexo demais e, eu a conheço bem, dar de ombros é um comportamento simplesmente absurdo para ela.
Deveria estar preparada para ver os familiares e amigos dele, aos olhos dos quais ela certamente se tornou uma vilã, comparando a aparência e a postura de cada uma, a ex e a atual, e comentando depois que no fim, ele se saiu melhor. E para, mais uma vez, ver a sua menininha, sua, sua, sua menininha, ter afeto e intimidade com outra figura maternal.
Minha amiga estava muito convencida de que não se incomodaria, mas repensou quando ouviu tudo isso. No entanto, é serviçal demais para dizer um não sem arestas e, no fim, devolveu a pergunta: se o ex não se incomodasse, por ela tudo bem.
Sábado
O tema da festa era passarinhos, porque a Cici ama.
As pessoas chegavam e diziam parabéns a mim, a mãe, e completavam que “o primeiro ano é da mãe”. Não sei o que fiz esse ano todo, a sensação é de que Cecília é alegre, forte, esperta e saudável por puro acaso, graças a todas as outras pessoas que cuidam dela. Ora, é da personalidade dela, ela nasceu assim. Os bebês são muito resistentes. Não fiz absolutamente nada, além de me atrapalhar com horários e refeições, tentar acalmar choros e fazer dormir. Nem sei onde estive esse ano todo. O que fiz certo, o que errei.
É claro que apenas sorri e celebrei os parabéns — não ia entrar na espiral das reflexões e deixar o animado interlocutor com cara de paisagem, desejando nunca ter me desejado os parabéns.
Como sempre, lindo relato, Ju. Você transporta o cotidiano para a crônica com tanta naturalidade que faz com que lhe acompanhemos como convidados da festa.
Guardei a palavra "serviçal"— que você usou duas vezes — que descreve bem um sentimento com o qual também convivo e insisto que caiba num verso de Rimbaud — e que talvez não tenha muito a ver com a intenção original do poeta — "por delicadeza, perdia minha vida".
A cada semana os textos ficam mais belos e singelos. Agradeço imensamente a primeira parte por já me preparar ao show do Oasis ano que vem.