Um milhão de inícios
Tentativa de responder à pergunta: “o que mudou em sua rotina de escrita depois da Cici?”
Tenho uma grande coleção de começos: cadernos escolhidos para serem diários com folhas em branco da metade em diante; dois livros infantis com uma ou duas páginas escritas aguardando continuação; muitas ideias para contos — e outros parágrafos que não avançaram; livros largados por uma razão misteriosa que não o enfado, com os marcadores pelas páginas 23, 47, 129. Também comecei a usar uma lousa de tarefas na qual ainda constam as tarefas de janeiro, parei na aula 2 de um curso de seis aulas, na aula 3 de um curso de 12 aulas, no minuto 18 de uma aula avulsa. Estava começando a treinar para peregrinar no Caminho Português de Santiago de Compostela quando, em uma travessia, me apaixonei e engravidei da Cecília — meu começo definitivo. Tentando solucionar essa resistência patológica à continuidade, comecei a fazer terapia. Cinco vezes, com quatro profissionais diferentes, os quais abandonei pela terceira ou quarta sessão por motivos diversos (nunca afirmei que sou flor que se cheire).
Os exemplos servem para atestar que a minha determinação não é lá grande coisa, e, como sabemos que para manter qualquer rotina é preciso muita determinação, admito que não tenho uma rotina de escrita, nunca criei uma rotina de escrita, e que essa falta de “constância material”, de resultados, me faz questionar se eu realmente amo escrever, se sou escritora, se isso faz tanto parte de mim quanto acho que faz, quanto cresci acreditando que faz. Pois o diablito volta e meia alardeia: “se fizesse, minha cara, você não ia preferir sair para nadar, para caminhar ou ler em seu tempo livre. Ia sentar e escrever”.
Talvez seja apenas ansiedade de produtividade, talvez eu realmente viva passando pano para mim mesma e evitando o compromisso que anseio por estabelecer. O fato é que: quem escreve vive escrevendo mesmo que não escreva, pois tudo o que lê, pesquisa e ouve influencia no que vai virar texto — a cabeça não para. E outra: nunca tive uma rotina, e, por isso, não posso dizer que ela mudou.
Posso contar como as coisas funcionam por aqui, pelo menos em relação a estas crônicas e breves ensaios: tenho a ideia, e com ela passo muito tempo (a pergunta de caixinha que este texto responde tem pelo menos duas semanas). É raríssimo eu sentar para escrever sem nenhum material, sem uma ideia pelo menos de primeiro parágrafo e mínima continuidade. Não faz sentido algum ficar na frente da tela, ou da folha em branco, dedilhando ideias ao acaso (estou me referindo aos textos literários, e não a diários, orações), pela pura e simples determinação de passar meia hora por dia escrevendo. Nesse caso, prefiro ir viver a vida real e esperar que a continuidade apareça, e passo mais algum tempo com essa continuidade, até colocá-la para fora.
Se é escrevendo que descobrimos do que falar, e começando que descobrimos a continuar, por aqui preciso antever aonde ir e arrumar as malas. Quando quero dialogar com outros autores, gosto de selecionar e copiar seus trechos como inspiração. Gosto, às vezes, de fazer uma lista sequencial de tópicos para conduzir o raciocínio, mas também gosto do improviso e já atrasei um pouco o jantar da minha filha com a ajuda da televisão porque compus uns versinhos no caminho de volta para casa e precisava anotá-los para não perder. E quando não aguento mais o texto na minha cabeça, quando ele está mesmo quase pronto, só falta escrever, então eu escrevo, e isso me toma sempre algumas horas — as quais posso pegar emprestadas do meu trabalho, em parcelas. Escrevo, escrevo, escrevo, até ficar cansada e precisar parar, para reler em outra hora e ver o que falta. Completo, se necessário. Deixo o texto descansar. Releio muitas vezes. Mostro para uma ou duas pessoas em quem confio para me dizerem se estou lamuriosa ou sentimental (comportamentos que começaram com Cici). E envio por aqui.
Era assim antes de Cici. Houve períodos de vazio, em que fui engolida pela vida prática, em que a pedra era só pedra. E continua assim depois dela. Com uma diferença: Cici me mostra o que é dedicação, me ensina a constância e a importância da ação e não só do pensamento. Para alguns isso é óbvio, mas para mim só poderia vir assim, na rotina que é cuidar de um filho, na necessidade quase dolorida de sair da minha própria cabeça. Por ela, para ela, sobre ela, fico querendo fazer mais e criar coisas, e cada ideia que aparece tem sido um pouquinho mais cuidada — pouquinho, porque aprender constância é lento, e porque há muita fralda para trocar, roupa para lavar, recolher, e passar, lancheira para montar, colinho para dormir. Tenho três textos para os próximos dias. Espero escrevê-los ainda este ano.
Que bonito 🥹